Caridade entre o vício e a virtude

Aurélio Clemente Prudêncio ou latinamente Aurelius Clemens Prudentius nasceu supostamente em uma província no norte da Espanha, no ano de 348d.C., e é considerado um dos maiores poetas da Antiguidade.

Dentre as obras de Prudêncio destaca-se a Psicomaquia ou a “Batalha das almas”, texto de aproximadamente mil versos que narra a disputa entre vícios e virtudes.

Considerado um dos pontos altos da Literatura Latina Cristã, o poema teve grande influência na produção artística da Idade Média.

À parte a curiosidade de se conhecer Prudêncio, o que nos interessa aqui é o debate que ele propõe entre os vícios e as virtudes, sobretudo porque, embora seu texto seja claramente apologético, para se pensar a respeito e praticar virtudes e evitar vícios, ninguém precisa estar necessariamente vinculado ao dogma ou a liturgia de uma religião ou de uma doutrina.

Prova disso é que na data de dezenove de julho se comemora, ou se relembra, o dia da Caridade no Brasil (o dia Internacional da Caridade é cinco de setembro – o dia da Caridade no Brasil foi oficializado com a Lei nº 5.063, de 4 de julho de 1966, decretado pelo então presidente Humberto Castelo Branco.), uma das mais nobres virtudes, em oposição à Avareza, um dos vícios mais desprezíveis.

Comumente, consideramos, dentro de nossa perspectiva do senso comum, a ideia de Caridade como um mero “auxiliar o outro”, mas, ela vai um pouco além disso.

A Caridade envolve, evidentemente, esse tipo de disposição, porém com uma nuance um pouco mais profunda. Para refletir sobre isso, pensemos na antípoda dela, como sugere Prudêncio, pensemos na Avareza.

A Avareza se caracteriza não apenas pelo acúmulo, mas também pelo egoísmo ou egocentrismo (o oposto de altruísmo), vários personagens da ficção podem servir de exemplo de avarentos, desde o mais famoso deles, Shylock, de Shakespeare (da comédia trágica O mercador de Veneza), até Montgomery Burns, de Os Simpsons, isso sem mencionar inúmeros outros de Charles Dickens.

Embora esses personagens sejam uma representação extrema da Avareza, eles servem, muitas vezes, para nos lembrar de nós mesmos e observarmos em nós algumas de suas características.

Claro que como seres humanos somos dotados, no mínimo, da igual medida de qualidades e defeitos, mas, muitas vezes, tentamos ignorar que possuímos defeitos e não podemos nos considerar um exemplo de virtude – coisa, aliás, que acontece com vários dos personagens citados, eles muitas vezes não se consideram falhos.

Nesse aspecto, fica evidente que, em muitos casos, nós não conhecemos a nós mesmos como deveríamos ou preferimos nos ignorar, o que, por conseguinte, resulta em nossa incapacidade de conhecer o outro ou, no mínimo, ser capazes de nos colocar no lugar do outro, temos uma profunda dificuldade em ser empáticos.

Por conta disso, boa parte de nossas atitudes consideradas altruístas ou caridosas nada mais são do que atitudes desprovidas de sentido, principalmente porque os atos caridosos refletem um automatismo social e não uma ato consciente de vontade – é de bom tom “ajudar os necessitados”, porém esse tipo de “ajuda”, na grande maioria dos casos não é fruto de uma vontade consciente de razão, ou seja, não é um juízo, mas fica apenas na esfera do senso comum.

Aqui, podemos relembrar, novamente, a maneira como Prudêncio coloca as relações entre defeitos e virtudes: como um campo de batalha, no qual precisamos estar atentos a nossas atitudes e em qual medida nossos atos estão realmente motivados por intensões verdadeiras.

O dia da Caridade não é, portanto, uma data para meramente exercitarmos nosso assistencialismo, mas sim para buscarmos em nós a capacidade tanto de nos conhecermos quanto de conhecermos os outros, para que seja efetivamente relevante o papel que procuramos cumprir: tornar o mundo um lugar melhor e mais humano para todos e, para isso, precisamos começar por nós mesmos.

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